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Leitura deCordel



Estória de João-Joana



Meu leitor, o sucedido
em Lajes do Caldeirão
é caso de muito ensino,
merecedor de atenção.
Por isso é que me apresento
fazendo esta relação.

Vivia em dito arraial
do país das Alagoas
um rapaz chamado João
cuja força era das boas
pra sujigar burro bravo,
tigres, onças e leoas.

João, lhe deram este nome
não foi de letra em cartório
pois sua mãe e seu pai
viviam de peditório.
Gente assim do miserê
nunca soube o que é casório.


Ficou sendo João, pois esse
é nome de qualquer um.
Não carece excogitar,
pedir a doutor nenhum,
que a sentença vem do Céu,
não de lá do Barzabum.

De pequeno ficou órfão,
criado por seus dois manos.
Foi logo para o trabalho
com muitos outros fulanos
e seu muque, sem mentira,
era o de três otomanos.

Na enxada, quem que vencia
aquele tico de gente.
No boteco, se ele entrava
pra bochechar aguardente,
o saudavam com respeito
Deus lhe salve, meu parente.

João moço não enjeitava
parada com sertanejo.
Podiam brincar com ele
sem carregar no gracejo.
Dizia que homem covarde
não é cabra, é percevejo.

Um dia de calor desses
que tacam fogo no agreste,
João suava que suava
sem despir a sua veste.
Companheiro, essa camisa
não é coisa que moleste?

lhe perguntou um amigo
que estava de peito nu.
E João se calado estava
nem deu pio de nambu.
Ninguém nunca viu seu pêlo,
nem por trás do murundu.

João era muito avexado
na hora de tomar banho.
Punha tranca no barraco
fugindo a qualquer estranho.
Em Lajes nenhum varão
tinha recato tamanho.

João nas últimas semanas
entrou a sofrer de inchaço.
Mesmo assim arranca toco
sem se carpir de cansaço.
Um dia, não güenta mais,
exclama: O que é que eu faço?
Os manos vendo naquilo
coisa mei' desimportante,
logo receitam de araque
meizinha sem variante
para qualquer macacoa:
Carece tomar purgante.

João entrou no purgativo
louco de dor e de medo
se entorcendo e contorcendo
na solidão do arvoredo
pois ele em sua aflição
lá se escondera bem cedo.

O gemido que exalava
do peito de João sozinho
alertou os seus dois manos
que foram ver de mansinho
como é que aquele bravo
se tornara tão fraquinho.

No chão de terra, essa terra
que a todos nós vai comer,
chorava uma criancinha
acabada de nascer,
E João, de peito desnudo,
acarinhava este ser.

Aquela cena imprevista
causou a maior surpresa.
O que tanto se ocultara
se mostrava sem defesa.
João deixara de ser João
por força da natureza.

A mulher surgia nele
ao mesmo tempo que o filho,
tal qual se brotassem junto
a espiga com o pé de milho,
ou como bala que estoura
sem se puxar o gatilho.

Se os manos levaram susto,
até eu, que apenas conto.
E o povo todo, assuntando
a estória ponto por ponto,
ficou em breve inteirado
do que aí vai sem desconto.

Nem menino nem menina
era João quando nasceu.
A mãe, sem saber ao certo,
o nome de João lhe deu,
dizendo: Vai vestir calça
e não saia que nem eu.

À proporção que crescia
feito animal na campina,
em João foi-se acentuando
a condição feminina,
mas ele jamais quis ser
tratado feito menina.
Pois nesse triste povoado
e cem léguas ao redor,
ser homem não é vantagem
mas ser mulher é pior.
Quem vê claro já conclui:
de dois males o menor.

Homem é grão de poeira
na estrada sem horizonte;
mulher nem chega a ser isso
e tem de baixar a fronte
ante as ruindades da vida,
de altura maior que um monte.

A sorte, se presenteia
a todos doença e fome,
para as mulheres capricha
num privilégio sem nome.
Colhe miséria maior
e diz à coitada: Tome.

É forma de escravidão
a infinita pobreza,
mas duas vezes escrava
é a mulher com certeza,
pois escrava de um escravo
pode haver maior dureza?

Por isso aquela mocinha
fez tudo para iludir
aos outros e ao seu destino.
Mas rola não é tapir
e chega lá um momento
da natureza explodir.

João vira Joana: acontecem
dessas coisas sem preceito.
No seu colo está Joãozinho
mamando leite de peito.
Pelo menos esse aqui
de ser homem tem direito.

De ser homem: de escolher
o seu próprio sofrimento
e de escrever com peixeira
a lei do seu mandamento
quando à falta de outra lei
ou eu fujo ou arrebento.

Joana desiste de tudo
que ganhara por mentira.
Sabe que agora lhe resta
apenas do saco a embira.
E nem mesmo lhe aproveita
esta minha pobre lira.

Saibam quantos deste caso
houverem ciência, que a vida
não anda, em favor e graça,
igualmente repartida,
e que dor ensombra a falta
de amor, de paz e comida.

Meu leitor (não eleitor,
que eu nada te peço a ti
senão me ler com paciência
de Minas ao Piauí):
tendo contado meu conto,
adeus, me despeço aqui.


Carlos drummond de Andrade e Sergio Ricardo

http://www.releituras.com/i_ciro_drummond.asp


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A Mulher que Dançava até com um Doido Batendo Lata


Neste mundo de meu Deus

Já vi acontecer tudo

Não ouvi fala de mudo,

Mas vi reza de ateus

E vi dança de entrudo

Mais um caso cabeludo

Bem longe dos Pirineus.

É uma mulher fogosa

Dessas que gostam de festa

Samba, forró e seresta,

Não se faz nem de dengosa

Com um fogo da mulesta

Ela dança que nem presta

E diz que é carinhosa.

Agora seu novo assunto

Toda hora que se vê

Ela só vive a dizer

Que está beijando muito.

Não sei se vai se perder

Pra não se arrepender

Ela sonda o intuito.

No momento o seu esporte

Ninguém vai adivinhar

Sua vida é só dançar,

Basta alguém dizer o mote

Quando menos esperar

Vê logo ela se esbaldar

Dançando o forró no pote.

Não pode ser diferente

A origem da danada

Que até de madrugada

Acha dançar excelente

Prá ir na sua passada

Precisa ser da pesada

Senão não tem quem aguente

Ela veio lá da serra

Viveu na roça plantando

Sua vida era cantando

Até que mudou de terra

Tá na capital morando

E sempre aproveitando

Toda festa ela encerra.

Dura feito antiga rocha

Ele é forte prá chuchu,

Brinca até de papangu

E no São João tira tocha

Dança, pula, come angu,

Sobe em pé de mulungu,

Nem aí ela afrocha.

Ela é muito viajada

Conhece o Brasil inteiro

Tira férias em janeiro

E sai toda preparada

No clube ou no terreiro

Sambista ou forrozeiro

É uma mistura danada.

Até em Caruaru,

Ela já dançou na feira

Foi em cima duma esteira

Dançou chupando caju

Depois dessa brincadeira

Comprou uma frigideira

Prá fritar ovo em Patu.

Dizem que é sensacional

Ver a dança da figura

Pois aquela criatura

Já teve até no jornal

Num dia de festa pura

Dançou como uma loucura

Nosso Hino Nacional.

Dança também ligeirinho

Tico tico no fubá

Carinhoso, Carcará,

Se solta em Brasileirinho,

É coisa de admirar

Quanto esteve no Pará

Fez um carimbó todinho.

Acharam até que era trote

Outro dia que alguém viu

Numa noite ela sumiu

Vestida até o cangote

De repente ela surgiu

Sem artifício ou ardil

Dançando com Pavarotti

Nossa amiga tem um pé

Que um dia dança valsa

Mas prefere mesmo a salsa

Você sabe como é

Mas se tirar sua alça

Der um colant e uma calça

Ela dança até ballet

Até na festa do boi

Onde tem gado nelore

Antes que alguém deplore

Ela diz logo a que foi

Dança no som do folclore

Veste um boi e se bole

Quando se vê já se foi.

Mas bom mesmo foi no dia

Que ela foi prá Salvador

Foi tanto que ela dançou

Pelas ruas da Bahia

O povo tanto gostou

Que a meninada gritou

De novo, vai, minha tia!

Lá no Rio de Janeiro

Ela também já dançou

Numa escola desfilou

Pelo sambódromo inteiro

Quando o samba terminou

Sambando continuou

Pelas ruas do Salgueiro.

Outra ocasião das boas

Que ela gosta de contar

Foi na noite sem luar

Tocada pelas garoas

Foi samba de arrepiar

Subiu na mesa de um bar

São Paulo viu, não é loa.

Com a amiga Libânia

Ela passou em Goiás,

De Chalana, pelo cáis,

Dançou uma linda guarânia,

Dizem que não dançou mais

Porque viu um capataz

Com um gesto de cizânia

Com todo aquele arrebite

Foi parar em BH

Queria também dançar

E dançou tango no Elite,

Depois, lá no Paraná,

Chegou procurando o mar,

E foi dançar, acredite.

Todo dia se constata

Nova dança da folgada

Que não tem medo de nada

De rato nem de barata

Sua última parada

É dançar bem animada

Com um doido batendo a lata.

Mas tenho que terminar,

Com essa história da dança,

Pois prá contar também cansa

Deixa ela descansar

Quem sabe outra festança

Lá na Ponte da Aliança

Ela não vai comandar...

Walter Medeiros

http://www.dancadesalao.com/agenda/cordeldancarina.php


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